Ah, o amor… pelos livros!

Um texto de José Douglas Alves dos Santos

Desde 2013 eu escrevia periodicamente na Obvious Magazine, na época a maior revista online em língua portuguesa da internet, que contava com uma audiência de milhões de leitores. Um grande projeto voluntário e colaborativo, em que os/as autores/as eram selecionados/as pela qualidade de seus textos, e que saiu do ar em meados de 2021, quando a pandemia de Covid-19 assolava o mundo. Lá eu tinha uma página, denominada Desmistificador de Dálias, onde publiquei cerca de 70 textos, alguns deles resenhas de filmes e discos, uma pequena parte de poemas e a grande maioria de reflexões sobre os mais variados assuntos. Infelizmente não salvei todos os textos produzidos no site para além da sua plataforma, então muito do material publicado foi perdido (alguns estou encontrando entre meus arquivos nas pastas antigas do computador ou no e-mail). Este é um dos que encontrei no e-mail, em que faço uma relação literária entre o amor e os livros. Pretendo publicar outros dos textos que encontrar aqui no Zen, como uma forma de deixar as publicações disponíveis e porque dialogam com nossa proposta editorial. Compartilho a seguir o texto, sem grandes modificações em relação ao original.

llibreria – bookstore – Amsterdam, por MorBCN (via flickr)

(Texto originalmente publicado em agosto de 2017)

Tudo começa com o primeiro olhar. Você está andando, distraído, pensamento longe, e então os olhares se cruzam e a magia acontece. Não pare, siga adiante, diz uma voz quase inaudível em sua mente. Mas você não a escuta e para. Desvie o olhar, desvie o olhar!, tenta gritar a voz. Seu olhar, todavia, não se preocupa muito em ouvir e prefere continuar apenas vendo. A voz então desaparece aos poucos e o único som distinguível no momento é o do seu coração; das batidas do seu coração, que agora bate cada vez mais forte e rápido. Não tem jeito, você foi fisgado, capturado, atraído pelo canto da sereia. Você está apaixonado.

O problema é que você acaba de se apaixonar por um livro. Mas não é um livro qualquer, é um livro em uma livraria. Todos sabem dos riscos de se apaixonar por livros em livrarias: eles são caros (muitas vezes muito mais caro do que se imagina) e não dá para simplesmente levar seu amor para casa com você. Este pode ser um grande erro – mais um de tantos outros que te acompanharão. A diferença é que este erro costuma ser cometido com frequência, ainda que você diga e repita que não o cometerá novamente. Se relacionar com livros que ficam expostos em livrarias é uma das piores formas de relacionamento que existe porque, por mais que insista e declare amor eterno, eles só sairão com você se… Se você pagar por eles!

Não adianta dizer que agora será diferente. Por mais que você tente e por mais que a obra te diga que também o quer, ela permanecerá exposta no mesmo lugar, todos os dias, até que você finalmente pague por ela. Você fala juras de amor, a acaricia, tenta despi-la folha por folha em suas mãos (isso quando não está presa dentro um plástico, um verdadeiro atentado aos seus instintos), só que não pode fazer com ela aquilo que deseja e que ela também diz querer tanto, porque se começam o flerte e a intimidade logo se introduz, algo os lembra que não será daquela vez, ainda não: há um preço colado ao seu “corpo” ou fixado numa placa próxima, exaltando suas qualidades ou destacando alguma promoção vagabunda de 10% (queremos promoção de verdade: no mínimo 50%!), sem contar nos demais livros ao lado, que olham curiosos ou como se estivessem te julgando por fazer algo inapropriado ao ambiente, bem como os demais clientes da loja (cliente, eu? Não, eu não sou apenas mais um cliente, você lhe diz), admiradores de sua escolhida, que o encaram esperando você sair para também terem a chance de estar com ela.

Cenas do vídeo em stop motion criado por Sean Ohlenkamp, intitulado The Joy of Books

É um ultraje a exploração do corpo literário, você pensa. Depois que já foi capturado pela obra, imagina que ela só tem olhos para você. Acredita que as palavras por ela proferida são verdadeiras, que ela está sendo sincera ao dizer que é o único em quem ela pensa e com quem deseja estar. Ledo engano, doce encanto. Ela está lá, exposta, passada de mãos em mãos, explorada por homens, mulheres, adultos e até mesmo crianças e idosos (até mesmo por eles!). E não adianta gritar, espernear, fazer cena e dizer que vai embora e não volta nunca mais. As obras continuarão lá, com a mesma postura e o olhar de sempre, pois, diferentes de nós (e assim como os felinos e muitos outros animais), elas sabem que somos indefesos ao seu poder de atração.

É quando você percebe que não tem outro jeito se não… Por céus, não há! Você precisa comprá-la. Fato. Ponto. Isso é angustiante, é cruel, chega a ser desliterário (vide desumano). Mas você precisa, não aguenta mais aquilo, essa agonia que consome sua mente, a forma como ela é exposta, como todos a olham, a tocam, a querem… Você ouve seus pedidos de socorro, de me salve, de me leve contigo, de quero tanto estar com você, viver com você, só os dois, na eternidade da dimensão dos sonhos e do tempo.

Tirinha produzida pelo artista argentino Liniers

Então você a compra. Ah, triste sina esta – pagar pelo grande amor de sua vida! E perguntam se você quer levá-la embrulhada, se é para presente. Será que não veem que tudo que você quer é tirá-la das amarras daquele lugar perverso, daquelas pessoas sádicas que parecem se divertir com seus sentimentos? Embrulhá-la, sério?! Tudo que você quer é pegá-la nos braços e dizer que de agora em diante tudo ficará bem…

… Só que não ficará. No início será aquela paixão arrebatadora, dia e noite, quase sem parar. Você não conseguirá largá-la facilmente, não conseguirá pensar em outra coisa. Seja na escola, na universidade, na ida ao trabalho, no trabalho e na volta dele, em qualquer lugar (você só pensa naquilo, só pensa nela). E ela estará lá, te esperando, te aguardando ansiosa para chegarem a novos níveis na relação, para ultrapassarem novos capítulos da história, enquanto o clímax só aumenta. Até que chega um momento em que de repente já não têm mais páginas a serem viradas, capítulos a serem deixados para trás. Acabou, simplesmente, acabou.

Charlie Bronw – Snoopy. Imagem via Pinterest

Não que vocês já não tenham mais interesse um no outro, longe disso, é o que você afirma a todos. No entanto, algo mudou. Ela começa a perceber que você já não mais a folheia como antigamente, já não mais a cheira e nem a toca com a mesma sensibilidade (e até mesmo ousadia). Ela está na estante, ao lado de tantas outras obras. É sempre assim, no início ela te engana com seu charme avassalador. Mas depois de algum tempo o encanto se perde, acaba.

Então ela começa a te observar mais atentamente e percebe que algo te angustia, deixando-o mais distante e preocupado. Todos os dias aquilo, o que está acontecendo?, ela se pergunta. No entanto, ela repara que você começa a usar outras roupas que não costuma usar com frequência; chega em casa mais tarde; já não a olha todos os dias quando chega. Não, não pode ser, assim ela pensa e quase (ch)ora. Por outro lado, você também está numa situação delicada, não esperava que aquilo acontecesse assim tão rápido (e se pergunta se é mesmo possível, se está acontecendo outra vez).

Até que ela o flagra, em sua casa, com outra – outra obra! –, ali, explicitamente, diante dela, você folheando-a com a mesma vontade com que a folheou. Oh, não, isso não pode ser verdade, ela não quer acreditar. Mas você não tem como negar, seus olhos dizem tudo, você está… Apaixonado. De novo. No início ainda tentou resistir (a grana tava curta, as despesas aumentando e o espaço na estante diminuindo), só que não conseguiu (parcelava para várias vezes, sem juros e ainda mantinha o desconto de 30%). Você não pensa, não pensa, alertava aquela voz interior voltando a ser abafada dentro de ti. Mais um livro exposto na livraria. Mais uma obra em que você não conseguiu desviar o olhar. E então recomeça, tudo outra vez.

Imagem via For The Love Of Books

Uma observação final: no fundo não acredito que os livros sintam ciúme de outros livros. Nem tampouco acredito que o encanto de uma obra literária produzido em nós, leitores e leitoras, se perca com o tempo. Na verdade, o que mudam não são os livros, e sim nós. É certo que algumas obras não produzirão aquela magia de quando havíamos sentido em nossa primeira leitura; também pode acontecer o contrário, a magia pode aumentar ainda mais, acrescendo também o nosso apego a elas; e pode ocorrer de uma obra então “rejeitada” ganhar um novo sentido com o tempo. Um livro não tem ciúme de outro, mas é bom termos cuidado para que ele não fique muito desconfortável parado nas nossas estantes. Devemos fazer o possível para cuidar bem deles, permitindo que mais pessoas, outras mãos e olhares, tenham acesso ao poder que eles nos deram, quando nos levaram a novas dimensões e nos permitiram enxergar a realidade com outras perspectivas. Sinta-se bem quando alguém demonstrar interesse em ler suas obras, emprestando-as ou presenteando-as quando for o caso. Tal como os brinquedos, eles precisam de novas mãos, novos olhares, novos sorrisos (ou lágrimas, em determinados casos); e como os pássaros, precisam continuar batendo suas asas, nos fazendo sentir a emoção de voar com junto com eles.

Imagem em destaque, Quint Buchholz, via Tutt’Art@

José Douglas Alves dos Santos

Um fatimense que caminha pelo mundo desmistificando dálias, observando nuvens e criando constelações de poesia

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